Proliferação das bets aumenta gastos de famílias e risco de problemas com o jogo
Não faz muito tempo, a médica Gabrielle Foppa atendeu um caso complicado durante a residência em psiquiatria forense na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em Porto Alegre. Um homem de apenas 28 anos havia tomado uma overdose de medicamentos a fim de tirar a própria vida. Ele era usuário de álcool e cocaína e, desde cedo, apresentava traços de personalidade antissocial, marcado pelo descaso com as consequências de seus atos e o direito dos outros. Ao investigar a história, Foppa constatou que a tentativa de suicídio havia sido uma atitude impulsiva, disparada pela impossibilidade de pagar uma dívida contraída em apostas esportivas on-line. Ele havia começado a jogar incentivado pela mãe, que ouvira em um anúncio ser uma forma fácil de ganhar dinheiro. O rapaz passou a apostar repetidamente e em pouco tempo acumulou um débito superior a R$ 10 mil. “Nesse caso, o transtorno do jogo foi a expressão de um quadro clínico mais complexo, no qual havia necessidade de muito estímulo externo e prazer imediato”, conta a agora psiquiatra, que descreveu o caso em fevereiro no Brazilian Journal of Psychiatry.
O que se passou com o paciente de Foppa não é uma situação isolada. Pensar em tirar a própria vida – e, por vezes, tentar – é de duas a três vezes mais comum entre as pessoas que desenvolvem uma relação problemática com o jogo do que entre o restante da população. Um em cada três apostadores pensa ao menos uma vez em se matar e um em cada oito realiza uma tentativa, segundo um artigo de pesquisadores da Noruega e do Reino Unido, que revisaram dados de 4,6 milhões de pessoas, publicado em janeiro na revista Psychological Bulletin.
Especialistas em saúde mental temem que o problema se torne bem mais frequente em consequência do grande número de plataformas de jogos on-line que passaram a atuar no Brasil depois de 2018, oferecendo desde apostas esportivas (sports betting) a jogos de caça-níquel, como o jogo do tigrinho (Fortune Tiger). Em dezembro daquele ano, o presidente Michel Temer, nas últimas semanas de seu mandato, sancionou a Lei nº 13.756, previamente aprovada pelo Congresso Nacional. A norma definia, entre outras coisas, a destinação do dinheiro arrecadado nas loterias e permitiu a exploração comercial das chamadas apostas de quota fixa, a ser exercida por empresas autorizadas pelo Ministério da Fazenda. A nova modalidade de jogo é associada a eventos reais ou virtuais (fictícios) de diferentes modalidades esportivas (futebol, vôlei, entre outros). É chamada de quota fixa porque, no momento da aposta, o jogador sabe por quanto será multiplicado o dinheiro que arriscou caso acerte o resultado do evento, que pode ser o desfecho de uma partida ou outro ato do jogo, como quem fará a primeira falta. Um exemplo: quem aposta R$ 2 em um evento com fator multiplicador 10 pode acabar com um saldo de R$ 20, caso acerte o resultado. Ou perder o que apostou e sair sem nada, se errar.
Da sanção dessa lei para cá, mais de 2 mil casas virtuais de apostas – as chamadas bets – passaram a atuar no país, segundo reportagem publicada em 13 de setembro no jornal O Estado de S. Paulo. A maior parte delas está sediada em outros países, alguns deles paraísos fiscais, e operam no Brasil por meio de um sócio nacional ou empresário contratado. “As apostas existem na internet desde os anos 1990, mas a partir do início da década de 2010, com a disseminação dos smartphones no Brasil, ficou mais fácil para os usuários daqui acessar os sites e aplicativos. Como grande parte dessas empresas está sediada no exterior, elas não cometiam contravenção penal no país por explorar os jogos de azar, prática proibida no Brasil desde a década de 1940”, explica Guilherme Klafke, professor de direito digital da Fundação Getulio Vargas (FGV), em São Paulo. “Ao mesmo tempo, é muito difícil fiscalizar e monitorar esses sites e aplicativos que, em geral, estão sediados em locais onde a legislação é flexível e sem muitas regras.”
Um relatório divulgado em agosto pelo banco Itaú estimou, a partir dos registros das transações financeiras do Brasil com outros países, quanto os brasileiros teriam movimentado no mercado de apostas on-line de julho de 2023 a junho de 2024. O valor é exorbitante: R$ 68,2 bilhões, ou 0,6% do PIB. Desse total, R$ 24,2 bilhões teriam sido taxas pagas às casas de aposta. Como prêmio, os apostadores teriam recebido bem menos, R$ 200 milhões. Em uma nota técnica de 23 de setembro, o Banco Central estimou que os brasileiros tenham apostado em jogos on-line cerca de R$ 20 bilhões por mês em 2024 – só em agosto 5 milhões de beneficiários do bolsa família teriam jogado R$ 3 bilhões. Do total apostado, 15% ficariam com as empresas. O resto teria retornado como prêmio.
Nos próximos meses, porém, a expectativa é que o número de bets caia. Em 16 de setembro, o Ministério da Fazenda publicou uma portaria definindo que, de outubro a dezembro deste ano, só poderão continuar atuando no Brasil as 108 empresas de apostas que, até aquela data, haviam solicitado autorização para explorar a modalidade lotérica de jogos virtuais. As demais, em princípio, serão notificadas a partir de 11 de outubro e bloqueadas. Depois da criação dessa modalidade de apostas, o país levou quase cinco anos para definir as regras para a atuação dessas empresas. “O Brasil demorou muito a adotar esse procedimento e o mercado passou a atuar em uma terra de ninguém”, observa a advogada Helena Lobo da Costa, professora de direito penal da Universidade de São Paulo (USP). Segundo Diogo Coutinho, professor de Direito Econômico da USP, essa demora contribuiu para agravar uma série de problemas, como o endividamento das famílias, sobretudo as mais pobres, e a lavagem de dinheiro. “É preciso uma resposta regulatória urgente e rigorosa, que dê conta dos impactos da explosão surpreendente desse tipo de aposta o Brasil”, comenta.
Sancionada em 29 de dezembro de 2023 pelo presidente Lula, após tramitação no Congresso, a Lei nº 14.790 estabelece que as bets têm de ter sede e administração no país e define como ocorrerá a tributação. Descontado o valor dos prêmios, as empresas ficarão com 88% do montante obtido com as apostas e o governo federal com 12%, que deverão ser aplicados em educação, segurança, vigilância de fronteiras e saúde. Da fatia do governo, 1% vai para “o Ministério da Saúde, para medidas de prevenção, controle e mitigação de danos sociais advindos da prática de jogos, nas áreas da saúde”. A lei de 2023 ainda abriu a porta para a legalização dos cassinos on-line oferecidos pelas empresas de apostas digitais, com jogos do tipo caça-níquel, entre outras modalidades.